DISCURSO DE POSSE DE IVES GANDRA MARTINS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOSOFIA EM 29/04/2008

Data: 30/04/2008
Resumo:
Eminente amigo Presidente João Ricardo Moderno; meu padrinho, amigo e grande poeta Carlos Nejar; autoridades presentes, excelentíssimos confreiras e confrades; minhas Senhoras e meus Senhores: Sucedo, nesta Casa, uma das maiores figuras do direito e da filosofia no Brasil: meu professor Miguel Reale. Conheci-o em 1954, quando minha esposa e eu ingressamos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tendo, os dois, recebido suas magníficas lições de filosofia do Direito, em 1958. Sua figura está na cimeira de uma geração de brilhantes professores, entre os quais destacam-se Goffredo da Silva Telles, Vicente Rao, Ernesto Leme, Waldemar Ferreira, Vicente Marotta Rangel, Gabriel Rezende, Alfredo Buzaid e outros. Todos, lentes e discípulos, admiravam-no, pois a facilidade expressional e o denso conteúdo de suas aulas, didaticamente apresentadas, faziam com que seus alunos – e outros mestres que, por vezes, freqüentavam suas classes ? ficassem como que hipnotizados, atentos à palavra incomparável do grande professor. Não sem razão, foi considerado, no campo da filosofia do direito, um dos grandes pensadores do século XX. A percepção da tridimensionalidade do direito, numa visão dinâmica, cuja simplicidade e invulnerabilidade permanecem no tempo e nas reflexões dos que se dedicam a este ramo da filosofia, lembram a genial solução dada pelo navegador Cristovão Colombo a serviço da Espanha, ao desafio de colocar um ovo na vertical. Com efeito, a descoberta de uma tensão permanente entre o fato, o valor e a norma, característica do direito positivo em permanente mutação, levou-o a encontrar, na dialética hegeliana, a explicação da cadeia interminável de busca da ?ordem social justa?, objetivo maior do direito. É, de resto, a melhor definição, a partir da descoberta de um núcleo imodificável, pertinente ao direito natural, e que se desenha na linha dos direitos fundamentais do ser humano, que Javier Hervada e Miguel Izquierdo, em seu ?Compêndio de Direito Natural?, ofertam ao direito: ?a ordem social justa?. Em face da própria fragilidade do homem, o direito positivo ? que não se opõe ao direito natural, mas completa-o, visto que, este, deve ser apenas reconhecido pelos homens e aquele, por eles criado, na busca constante pela perfeição na ordem e na convivência humana – o direito positivo, repito, encontra-se em permanente tensão. No momento em que uma norma é criada, passa a ser valorada e a sofrer o conflito entre os objetivos propostos e os obtidos, revelando, então, suas insuficiências para normatizar plenamente os aspectos sociais que pretendeu regular. Quando H.L.Hart afirmou que jamais o homem conseguiria produzir leis capazes de regular a totalidade das relações e reações humanas, no seu ?Conceito do Direito?, em 1961, confirmou, de certa forma, a admirável formulação ?realiana?, de que as tensões são a decorrência desta inacabável escassez de soluções encontradas pelo direito para regrar a ordem social. Esta é a razão, de resto, pela qual, ao utilizar a metodologia dialética da ?tese, antítese e síntese?, que se transforma em nova tese, demonstrou que a tridimensionalidade jurídica decorre da perspectiva do legislador, que, ao valorar um fato, cria norma para regulá-lo, e esta se transforma, a partir de sua elaboração, em perspectiva de norma futura em novo fato, no momento em que, ao ser valorado, cria uma tensão que há de produzir uma nova norma modificativa, num processo dinâmico, encadeado e infindável, que constitui a essência da própria evolução da Ciência Jurídica. Há anos atrás, quando da publicação da 10a. edição do livro ?A tridimensionalidade do Direito?, na edição espanhola, reuniram-se juristas de todo o continente para o estudo de sua obra e da universal contribuição à filosofia do direito, à luz da estupenda formulação da teoria tridimensional dinâmica, que a rege, pelo mestre formulada. A obra de Miguel Reale é ampla. Apenas para não me alongar demasiadamente, lembro a contribuição notável para o estudo da fenomenologia ?husserliana? que o maior de nossos filósofos apresentou, constituindo, seus estudos a respeito, interpretação das mais densas, profundas e criativas do difícil conteúdo fenomênico dos escritos de Husserl. Reale não foi apenas um filósofo e um jurista. Foi, fundamentalmente, um professor de direito e um advogado. Como seu aluno – de classe em 1958, e de vida até hoje – acompanhei seu trabalho magnífico, inclusive como reitor da USP. Lembro-me de um fato que revela seu espírito de mestre permanente. Ele sempre quis ser chamado de ?professor?; quando eu lhe ligava para algum trabalho comum, ao atender o telefone, dizia: ?aqui fala o Professor Reale?. Tive o privilégio de conviver com Miguel Reale, profissional e academicamente. Fomos confrades nas Academias Paulista de Letras, Paulista de História, Brasileira de Letras Jurídicas e fundamos a Academia Internacional de Direito e Economia. Por ela publicamos três livros em conjunto: ?O estado do futuro?, ?Desafios do século XXI? e a ?Ética no direito e na economia?. Convidou-me para apresentar seu livro ?O conflito das ideologias?, notável diagnóstico prospectivo da oposição entre as duas ideologias que se confrontaram no século XX, no campo político e econômico. Escrevemos pareceres juntos, publicados, inclusive, pela Universidade de Coimbra. Atuamos em áreas culturais, lado a lado, como quando presidi o Clube da Poesia, fundado por Cassiano Ricardo, e que, na comemoração de seus 50 anos, publicou livro com 50 poemas de cinco juristas-poetas, a saber: de Geraldo Vidigal, que deu início à corrente poética denominada ?Geração de 45?, Oscar Corrêa, Saulo Ramos, Miguel Reale e meus. O livro foi também publicado na Romênia pela Editora Didacticã si Pedagógicã, na Coleção ?Akademus?, dedicada exclusivamente à poesia. Foram os poemas vertidos por dois dos maiores poetas romenos da atualidade (Oana Almãsin e Irene Petros). Neste ano, também, recebeu o maior prêmio do Clube, por sua obra, o notável poeta Carlos Nejar. Vale a pena lembrar um fato curioso, que bem demonstra a figura também insuperável de poeta, que Miguel Reale personificava. Distribuídas as provas do livro para os cinco autores, o Professor Miguel Reale telefonou-me, dizendo: ?Ives, se você colocou o nome de sua mulher nas poesias que lhe dedicou, quero que acrescente, no meu primeiro soneto, que ele é dedicado à Nuce?. De imediato, atendi ao seu pedido e a expressa menção a Nuce, já então com 80 anos, do livro constou. Tomo a liberdade de ler o antológico poema, porque é uma das mais belas lições de amor conjugal que, em toda a minha vida, tive oportunidade de receber: ?ETERNA JUVENTUDE Para Nuce Quando em meus olhos os teus olhos pousas vejo-te jovem como via outrora: luz interior não é como são cousas pulverizadas pela mó das horas. Amar é ver o mundo em transparência Iluminando o corpo que envelhece, reconduzido o curso da existência à fonte espiritual que não perece. O nosso novo e antigo amor perdura iluminado por uma luz tão pura que, por mais que este mundo aziago mude, sentiremos até o fim da vida a velhice corpórea adormecida no milagre de nossa juventude? (p. 57, Poemas, Ed. LTR, 1995). Miguel era, ainda, notável jornalista, admirável historiador, fantástico coordenador de projetos em prol da cidadania. Lembro-me, quando presidia a Comissão do Governo do Estado de São Paulo para a Revisão Constitucional de 1993 – que ficou conhecida como a ?Comissão Miguel Reale? e da qual participei, elaborando as alterações do Título VI (Sistema Tributário, Finanças Públicas e Orçamento) – do respeito que todos os participantes por ele tinham, não só pela sua condição de presidente dos trabalhos, mas pelo estupendo conhecimento de todos os aspectos da lei suprema. Naquela Comissão, composta por figuras de renome nacional, como Celso Lafer, Ada Pellegrini Grinover, José Afonso da Silva, Tércio Sampaio Ferraz e outros, além do próprio governador Fleury, todos ficavam impressionados pela forma como conduzia
os trabalhos e aplicava seus profundos conhecimentos às soluções que estávamos propondo. E paro por aqui as considerações sobre Miguel Reale, pois tantos seriam os aspectos de sua personalidade e de sua vida que mereceriam ser abordados, que dificilmente se poderia comentar seu currículo, ainda que de forma perfunctória, num único dia, mesmo que devotado, inteiramente, a esse mister. Dedicado marido, pai e avô, que cuidou de seus netos órfãos, como verdadeiro progenitor, após a morte trágica de sua filha e de seu genro (Lívia Maria e Antonio Carlos Ferrari), foi um mestre admirável, que tanto hoje, como para o futuro, continuará influenciando gerações de brasileiros. Eu, pessoalmente, que fui seu aluno, seu amigo e seu companheiro de trabalho, sinto-me profundamente honrado e feliz em sucedê-lo, visto que, durante anos, mantivemos o mais fraternal relacionamento. O seu incomparável brilho e seu insuperável talento tornam, pois, impossível qualquer pretensão de ombreá-lo. De rigor, sucedo-o apenas por passar a ocupar a cadeira que notabilizou. O gênio de Miguel Reale jamais encontrará no país sucessor à sua altura. À honra imensa de sucedê-lo acresce-se à de poder compartilhar idéias com os melhores pensadores do país, nesta admirável academia, que lembra a fundação platônica, em que se forjou, após toda a preparação dos pré-socráticos, a verdadeira história da filosofia moderna. E neste ponto gostaria de fazer algumas perfunctórias considerações. Estou convencido de que, após as lições da tríade maior da filosofia grega, toda a produção posterior foi periférica, visto que os grandes temas já tinham sido abordados pelos três mestres maiores da busca da sabedoria e da verdade. Guilherme Fraile, na sua monumental ?História da filosofia?, editada em 10 volumes pela BAC da Espanha, apresenta o resumo das teorias e doutrinas de mais de 500 filósofos Greco-romanos de expressão, os quais, desde os tempos dos pré-socráticos até a decadência do império romano do Ocidente, refletiram sobre a principal das Ciências Humanas, aquela que perscruta as verdadeiras riquezas da natureza humana e sua inserção na ordem universal. Todos eles, sem exceção, escreveram obra de porte. Os pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles e toda a plêiade de pensadores que os seguiu, procuraram, alguns, inovar a sua teoria (epicurismo e ceticismo), outros, compatibilizá-la com as religiões – como, por exemplo, Filon, em relação ao judaísmo, Plotino, na busca de preservação da religião romana, em face do cristianismo -, todos eles, entretanto, procurando adaptarem-se aos conhecimentos próprios do século em que viveram. É notável verificar as lições de Sócrates. Acredita-se que suas idéias foram pouco modificadas, na exegese platônica, visto que só a conhecemos, por força dos diálogos de Platão. Percebe-se nelas evolução de postura, principalmente, na concepção dos grandes temas de reflexão – os deuses, o homem, a alma e a lei-, principalmente nos quatro ?diálogos-chaves?, que desventram o choque entre o indivíduo, a ordem da cidade, da lei e da eternidade. Como grande parte da minha reflexão jurídica recaiu sempre sobre o choque permanente, entre o indivíduo e o Estado – seja na primeira das trilogias (?O Estado de Direito e o Direito do Estado?, ?O Poder? e ?A nova classe ociosa?), seja na segunda (?Uma visão do mundo contemporâneo?, ?A era das contradições? e ?A queda dos mitos econômicos?) -, compreende-se minha particular preferência pelos quatro diálogos seqüenciais, em que Sócrates, o protagonista, prevê o seu futuro julgamento, aceitando-o (Etifron). Defende-se com argumentos irrefutáveis, mas que não foram considerados, tendo sido condenado (Apologia), nega-se a fugir, quando instado a fazê-lo por seus discípulos, mesmo sendo sua fuga desejada por seus injustos julgadores (Crito) e faz considerações sobre sua morte, na prisão, definindo-a como uma abertura para a eternidade e libertação da prisão humana (Fedon). O choque entre o indivíduo pleno, consciente de seus direitos e de sua razão e o Estado – cujo poder, na maior parte das vezes, é conquistado por oportunistas despreparados, que o ambicionam para utilizá-lo em proveito próprio, e não para servir ao povo – fica nitidamente retratado, nos quatro diálogos, como uma lição futura para ser apreendida por políticos e governantes, no dia em que se dispuserem a servir, mais do que a serem servidos. Arthur Clark, notável escritor de ficção científica, recém-falecido, equiparado em sua época a Isaac Asimov, num de seus contos, idealizou um corpo sideral, onde uma civilização só era governada por aqueles que não desejariam governá-la. Naquela democracia, quem mostrasse ambição e interesse pelo poder era automaticamente afastado de qualquer disputa, pois estaria pensando mais em si próprio do que no povo. Em Etifron, ao aconselhar amigo seu a submeter-se ao julgamento, acreditando nas leis da cidade, que sempre respeitara, Sócrates procura mostrar que a justiça decorre da certeza de que os que a dirigem são capazes de preservar cada cidadão, assim como de dirigir a cidade, mantendo uma relação de equilíbrio e estabilidade que permita realçar os valores da comunidade. Por esta razão, tendo a opção de não se submeter ao julgamento de sua ?polis?, quanto à falsa acusação de ministrar à juventude corrosivos ensinamentos, bastando para isto dirigir-se a qualquer outra cidade-estado, que o acolheria com as honras que seu talento merecia, preferiu mostrar o profundo respeito que tinha, como cidadão, às leis de sua cidade, esperando que a justiça prevalecesse. E sua defesa, na Apologia, é devastadora, não deixando qualquer acusação sem resposta. Sua condenação, entretanto, não difere daquela com a qual os detentores do poder afastam os indivíduos capazes de lhes mostrar – como na velha fábula do rei da roupa invisível ? a intriga, a adulação e a mentira. Persiste, ao longo da história, uma concepção de Estado segundo a qual os social e politicamente inconvenientes devem ser eliminados. Quando Carl Schmitt, em sua teoria das oposições, declara que a arte opõe o belo ao feio, a moral o bem ao mal, a economia o útil ao inútil, e que a política opõe o amigo ao inimigo, não faz senão relembrar as lições maquiavélicas de que é bom o governante, mesmo que mau, se não perder o poder, e mau o governante, mesmo que bom, se o perder. Por esta razão, em todos os períodos da história, em todos os espaços geográficos, nas democracias, as campanhas para conquistar o poder objetivam apenas destruir a imagem do adversário, e nas ditaduras, a própria vida e a liberdade dos que se opõem. A lição de Sócrates sobre esta oposição permanente entre o indivíduo, na luta por suas aspirações maiores, e o Estado, que não constitui, segundo Helmut Kuhn, senão uma simples estrutura do poder, é tão atual quanto o foi, à época, e o será, no futuro, até o fim dos tempos. Em Crito, o filósofo não acata as sugestões de fuga que os discípulos lhe propõem e que os julgadores tolerariam, com um argumento imbatível: que pensariam seus discípulos, que sempre o tinham ouvido falar no respeito à lei da cidade, vendo-o não respeitá-la, fugindo ao seu cumprimento, ou seja, à pena de morte? Para dar o exemplo a seus discípulos e a todos os que sofressem perseguições futuras, declara aceitar a morte que, como termina por concluir, em Fedon, é o que mais o ser humano deve desejar, pois é a libertação da prisão corporal para a eternidade. De rigor, mostra que, nesta passagem pela terra, nada somos e iludimo-nos quando pensamos deter qualquer forma de poder real, pois todo poder é transitório, visto que somos todos condenados à morte, uns nela vendo a libertação, pela vida que levaram, e outros, temendo-a por não terem vivido uma vida digna de merecer a eternidade. Nos dias que correm, estas permanentes oposições, entre o indivíduo e o poder, entre a Justiça e a lei feita pelos governantes, – mais em benefício deles próp
rios do que no do povo, como afirmava Hart – entre o bem e o mal, entre o temporário e o eterno, encontramos, pela pena de Platão, nas lições duradouras de Sócrates, que influenciaram todas as gerações de juristas e pensadores, à luz exclusiva da reflexão filosófica. Poderia tecer outras considerações, neste meu ingresso na Academia Brasileira de Filosofia, mas já cansei demais meus pares e convidados com estas meditações pessoais sobre o grande e permanente desafio do homem, em sociedade, que é saber como atingir uma ordem social justa e o equilíbrio entre o indivíduo e o Estado. Quero agradecer a presença de todos, sem exceção, principalmente de meus pares e do eminente professor João Ricardo Moderno, autor de sólida obra e profundas reflexões sobre a filosofia da estética da contradição, o qual nos preside com admirável competência e extraordinário saber, assim como a Carlos Nejar, jurista, filósofo, historiador e dos mais conceituados poetas da literatura brasileira, cujo estilo inconfundível e incomparável descortinou novos horizontes para a poesia ibero-americana. Não sem razão, seu nome está sendo proposto para Prêmio Nobel de Literatura, com apoio de entidades culturais de todo o mundo, inclusive a respeitadíssima Academia Internacional de Cultura Portuguesa em Lisboa. Agradeço suas palavras generosas de particular amigo que, à evidência, tornam suspeita, pelo grande querer bem que nos une, a pretendida imparcialidade que procurou demonstrar. Muito obrigado a todos, amigos, familiares e principalmente, à minha esposa Ruth, companheira há 50 anos, num casamento que foi, certamente, a maior dádiva que o Senhor Meu Deus ofereceu-me, nestes 73 anos de existência. Muito obrigado, muito obrigado.
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